Apresentação de “Bichas sem grana”, de Amber Hollibaugh
O texto de abertura deste blog é uma tradução do ensaio “Queer without money”, publicado em junho de 2001 pela escritora e ativista estadunidense Amber Hollibaugh (1946–2023). Antes de apresentar o texto em si, gostaria de umas breves palavras sobre a atualidade da discussão proposta pela autora.
Amber Hollibaugh nasceu na Califórnia em 1946, e faleceu em outubro de 2023, aos 77 anos, em Nova York. Sapatona e militante lésbica, durante sua trajetória, Amber participou de diversos grupos e ações de mobilização feministas, LGBTQIAPN+ e de pessoas vivendo com HIV. Na década de 1960 ela colaborou e foi líder de um grupo canadense de legalização do aborto seguro, e no final da década de 1970 participou de ações voltadas à proteção dos direitos de pessoas queers que, nos Estados Unidos, podiam ter seus direitos restringidos em virtude da Briggs Iniciative.
A trajetória política e intelectual de Amber permeia diversos campos e é justamente por essa porosidade que suas cartas, editoriais e ensaios movimentam olhares tão perspicazes para espaços que podem parecer um tanto “senso comum”. O que ela chama de bonança gay é um desses temas.
Por muito tempo esse texto ocupou minha imaginação como uma crítica possível para diversos aspectos que constituem experiências de sexualidade e gênero inconformes, especialmente no universo de pessoas com as quais convivi durante minha formação. Refiro-me, fundamentalmente, à minha formação como pessoa, já que com antropólogo nunca discuti diretamente os efeitos da economia material nas experiências de pessoas LGBTQ na minha produção. Sobre esses pontos, algumas ponderações.
Entre 2012 e 2016 eu pude pesquisar a sociabilidade de homens que frequentavam espaços de pegação. A partir disso, tentei entender como organizam e dão sentido às suas experiências e vivências em torno do corpo, da sexualidade e da relação com outras pessoas. Esta pesquisa foi feita em João Pessoa, capital da Paraíba, e resultou na minha dissertação de mestrado. A cidade é uma capital de pequeno porte, à época com uma oferta de trabalho bastante limitada ao setor de serviços e comércio. Muitas das pessoas com quem convivi eram trabalhadores e trabalhadoras desses segmentos e que, entre outros tantos motivos, utilizavam espaços públicos liminares para ter seus encontros com outros. Esse aspecto é recorrente e objeto de discussão nos estudos socioantropológicos sobre sexualidade desde a década de 1970 e não precisa ser aprofundado agora.
Em 2016, eu iniciei uma pesquisa de outra natureza, desta vez na região de tríplice fronteira amazônica. Se o contexto e as ofertas de trabalho já eram reduzidas em uma capital nordestina, o que dizer de uma pequena cidade no interior do Brasil, em uma região de fronteira? Assim como João Pessoa, não se trata de “cidades pobres”, mas regiões onde o capitalismo apresenta facetas muito duras quando se refere à distribuição do poder e da propriedade. Durante os vários meses em que estive lá ao longo dos anos de 2016 e 2018, a flutuabilidade no acesso ao dinheiro, bem como a baixa qualificação que permitisse postos de trabalho menos desvantajosos era um aspecto recorrente das biografias dos meus interlocutores.
A esse histórico, devo dizer, soma-se também o meu. Como uma bicha pobre, nasci e cresci nas periferias de João Pessoa. Meu pai jamais chegou a ganhar algo perto de dois salários mínimos durante toda sua vida laboral, ainda que desse tempo todo, quase 30 anos de sua vida tenham sido dedicados a uma única empresa. Minha mãe, por sua vez, alternou entre faxineira e empregada doméstica. Um dos lugares onde trabalhou, um hospital fundado na década de 1970, foi à falência em 2012 e ela nunca teve seus direitos pagos.
Dinheiro é parte dos mecanismos de garantia das condições materiais básicas de sobrevivência, e não pode ser ignorado na compreensão das relações entre sexo-gênero diversos, lugar e projetos de mundo. Ele faz parte da minha biografia, das pessoas com quem convivi e da sua também.
Contudo, fazer uma leitura de como a imagem da abundância nos compele a uma moralidade burguesa não é simples. O capitalismo organiza e naturaliza tanto de nossas existências, e nem sempre é fácil entender como ele se ramifica em camadas tão complexas.
O texto de Hollibaugh foi escrito e publicado em junho de 2000. Naquele momento, seria pouco provável antecipar algumas características fundamentais do mundo contemporâneo: o acirramento das tensões entre oriente e ocidente, tanto em termos culturais quanto econômicos; a crise de 2008; o avanço de grupos extremistas; a instabilidade de direitos de pessoas queers; a persistência da violência de Estado contra grupos minoritários, entre outras tantas; a presença e força de redes sociais e da internet na construção da política institucional.
Felizmente, há também pontos de invisibilidade no texto que expõem a possibilidade de futuros melhores: as redes de aliança entre grupos oprimidos pelas violências que estruturam a sociedade Ocidental e, ao menos em alguns países, a presença de pessoas trans nos espaços institucionais e órgãos de governo.
Apesar desse cenário animador, cabe ainda pensar sobre a precariedade e as formas de garantia da vida material em um contexto global cada vez mais complexo. As tecnologias e a maior representatividade simbólica que temos em espaços de mídia também oferece uma perspectiva moral que constrange o fracasso. Afinal, de que serve o viado sem grana? De que serve a travesti que não pode bancar seus namorados? A partir de um repertório cultural condizente com sua época, “Queers without money” antecipa algumas dessas questões e oferece um universo de referência que nos interessa em termos de inventar uma política bicha.